O Senhor por meio dos enviados
por Anselmo Lima
Há algo profundamente marcante na fé do centurião — uma fé prática, lúcida e surpreendente. É evidente, pelo relato, que ele havia ao menos ouvido falar de Jesus e de seus feitos. No entanto, o que realmente impressiona é como essa fé se manifesta a partir de sua própria experiência de vida e da forma como ele compreendia o mundo. É nesse ponto que começamos nossa jornada: explorando uma fé que nasce não apenas do ouvir, mas do discernir — e que, por isso mesmo, maravilhou o próprio Cristo.
Mt 8:5-10: Tendo Jesus entrado em Cafarnaum, chegou-se a ele um centurião, rogando-lhe, e dizendo: Senhor, meu servo jaz em casa paralítico, horrivelmente atormentado. Disse-lhe Jesus: Eu irei, e o curarei. O centurião respondeu: Senhor, não sou digno de que entres debaixo do meu telhado; mas somente fala a palavra, e meu servo será curado. Pois também eu sou homem sujeito à autoridade, e tenho soldados às minhas ordens; e digo a este: Vai, e ele vai; e a outro: Vem, e ele vem; e ao meu servo: Faze isto, e ele o faz. Jesus, ouvindo isso, maravilhou-se, e disse aos que o seguiam: Em verdade vos digo que não encontrei tamanha fé, não, nem mesmo em Israel.
Este é um relato profundamente significativo, pois revela uma expressão de fé tão autêntica que deixou Jesus admirado — ou, por que não dizer, surpreso. Ele chegou a afirmar que nem mesmo em Israel encontrou fé tão grande, ou seja, nem entre os de seu próprio povo se viu uma demonstração tão prática e convicta como a do centurião.
Prática e eficiente — prática porque descreve de forma explícita uma realidade vivida pelo centurião. Como oficial do exército romano, ele comandava ao menos cem homens, prontos para obedecer a qualquer ordem que lhes fosse dada. Essa obediência não se devia apenas à sua autoridade direta, mas também ao entendimento de que o centurião estava subordinado a uma hierarquia superior. Desobedecê-lo significava, na prática, romper com toda a cadeia de comando.
Basicamente essa hierarquia acima do centurião era composta da seguinte forma:
Tribuno: Comandava uma coorte, que era composta por várias centúrias.
Legado: Era o comandante supremo de toda a legião.
Centurião-Chefe (Primus Pilus): O centurião mais antigo e de maior patente na legião, responsável pela primeira centúria da primeira coorte. Ele tinha um papel de liderança significativo e era muitas vezes visto como um "coronel" moderno.
Hierarquia abaixo do centurião:
Optio: O segundo em comando de uma centúria, abaixo do centurião.
O texto o retrata como um centurião — alguém plenamente familiarizado com o ato de obedecer e com a responsabilidade de comandar. Ele compreendia profundamente o significado de estar sob autoridade, assim como o de exercer liderança sobre seus soldados. Os centuriões detinham grande poder e eram conhecidos por sua disciplina rigorosa. Cabia a eles o treinamento e a condução das tropas, transmitindo ordens de maneira clara, objetiva e inquestionável.
Se tivéssemos apenas o relato do evangelho de Mateus, já seria algo extraordinário. A mensagem estaria clara, e o ensino que o Espírito Santo deseja transmitir seria plenamente compreendido. No entanto, como se isso não bastasse, o mesmo episódio narrado no evangelho de Lucas amplia ainda mais a compreensão, oferecendo maior riqueza de detalhes e profundidade ao ensinamento.
Lc 7:2-10: E o servo de um certo centurião, o qual era muito estimado por ele, estava doente, e à morte. E, quando ouviu falar de Jesus, enviou-lhe uns anciãos dos judeus, rogando-lhe que viesse curar o seu servo. E, chegando eles junto de Jesus, rogaram-lhe muito, dizendo: É digno de que lhe concedas isto, Porque ama a nossa nação, e ele mesmo nos edificou a sinagoga. E foi Jesus com eles; mas, quando já estava perto da casa, enviou-lhe o centurião uns amigos, dizendo-lhe: Senhor, não te incomodes, porque não sou digno de que entres debaixo do meu telhado. E por isso nem ainda me julguei digno de ir ter contigo; dize, porém, uma palavra, e o meu criado sarará. Porque também eu sou homem sujeito à autoridade, e tenho soldados sob o meu poder, e digo a este: Vai, e ele vai; e a outro: Vem, e ele vem; e ao meu servo: Faze isto, e ele o faz. E, ouvindo isto Jesus, maravilhou-se dele, e voltando-se, disse à multidão que o seguia: Digo-vos que nem ainda em Israel tenho achado tanta fé. E, voltando para casa os que foram enviados, acharam são o servo enfermo.
Percebemos que, no evangelho de Lucas, a narrativa é significativamente ampliada. Agora, o centurião não se dirige pessoalmente a Jesus, mas envia, em seu lugar, os “anciãos dos judeus”.
Sabemos que esses anciãos eram homens de autoridade e sabedoria, líderes respeitados na comunidade, responsáveis por representar os interesses das famílias e dos clãs. Seu papel envolvia a condução da vida comunitária, a mediação de conflitos, a tomada de decisões relevantes e o aconselhamento aos governantes.
O relato de Lucas é particularmente intrigante, pois apresenta uma aparente contradição e, ao mesmo tempo, um elemento profundamente impactante: os anciãos judeus, representantes do povo, vão até Jesus para interceder em favor de um romano — um centurião.
Vamos primeiro esclarecer o aspecto “impactante” e, em seguida, abordar a possível “controvérsia”. O gesto dos anciãos judeus ao se dirigirem até Jesus revela a profunda estima que o centurião havia conquistado. Essa consideração não surgiu por acaso, mas foi fruto do amor genuíno que ele demonstrava pelo povo e da sua iniciativa em construir a sinagoga — um ato que evidenciava respeito, generosidade e compromisso com a comunidade.
Para compreendermos a aparente controvérsia entre os relatos de Mateus e Lucas, é essencial mergulhar um pouco na cultura do mundo antigo. Naquela época, era comum que uma pessoa enviasse representantes ou mensageiros em seu nome, e esse ato era entendido como uma extensão da própria presença. Ou seja, quando alguém falava ou agia em nome de outro, era como se o próprio emissor estivesse ali, pessoalmente.
Nesse contexto, o evangelho de Mateus afirma que o centurião “foi” até Jesus, o que deve ser interpretado de forma representativa. Mateus está transmitindo a essência do encontro — a iniciativa e a fé do centurião — sem se prender aos detalhes logísticos. Já Lucas, por sua vez, oferece uma narrativa mais detalhada, revelando que o centurião enviou intermediários, especificamente os anciãos dos judeus, para falar com Jesus em seu lugar.
Esse tipo de representação era perfeitamente natural na linguagem judaica e greco-romana do século I. Um exemplo paralelo seria o de um embaixador que fala em nome de um rei: mesmo que o rei não esteja fisicamente presente, é comum dizer “o rei disse”, pois o embaixador carrega sua autoridade e intenção. Assim, não há contradição entre os dois evangelhos, mas sim uma diferença de estilo narrativo — Mateus foca no significado espiritual do gesto, enquanto Lucas detalha o protocolo cultural envolvido.
É justamente aqui que quero provocar sua reflexão.
O que o centurião compreendeu, fruto de sua vivência e experiência, foi algo tão profundo que deixou Jesus maravilhado — uma fé que Ele próprio chamou de tosoutos “tão grande” fé.
A compilação dos relatos de Mateus e Lucas nos revela uma verdade que o Espírito Santo deseja comunicar — uma verdade que o centurião discerniu com muita clareza, mas que ainda é pouco vivida pelos próprios cristãos. Ele entendeu, naquele contexto, que a autoridade espiritual não dependia da presença física de Jesus, mas da convicção no poder delegado. bastava o comando verbal de Jesus. Essa percepção, raramente experimentada com profundidade, tem implicações diretas na vida cristã, especialmente no exercício do serviço ao corpo.
Avancemos para uma compreensão mais dinâmica sobre o que significa sermos comandados por Cristo.
Vejamos o que Ele declara em Lucas 10:16: “Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza; e quem me despreza, despreza aquele que me enviou.”
Esse versículo confirma a mesma perspectiva de autoridade delegada que vemos no episódio do centurião. Ao cumprirmos o ide — a missão que Jesus nos confiou — em Seu Nome e sob Sua autoridade, estamos agindo como representantes diretos do Rei. Assim como o centurião compreendeu que uma ordem dada em nome de uma autoridade superior carrega o peso dessa autoridade, nós também, ao obedecer e agir conforme a Palavra de Cristo, estamos dizendo com nossa vida: “Basta uma palavra, e será feito.”
A diferença é que, agora, o Verbo já foi pronunciado. O comando foi dado: “Vão e façam.” O que resta é a obediência ativa, fundamentada na fé e na convicção de que, ao falarmos e agirmos em nome de Jesus, o céu se move em resposta, pois não pode ser diferente.